Eu tenho uma tia mais nova que sempre teve muito apego com seus bens materiais. Os livros que foram dados pelo seu pai não podiam ser abertos completamente para não amassar a lombada, os brinquedos precisavam continuar nas suas caixas, em cima de um guarda-roupa protegidos por outras caixas. Ela sempre foi um objeto de estudo meu, que não entendia porque ela era tão meticulosa com suas coisas. Aí, óbvio, como tudo na vida, tem um momento que acontece algo que nos marca pra sempre: o dia que eu quebrei seu discman.
Essa lembrança vive no meu cérebro em um cantinho muito específico, junto com várias outras tralhas que eu não sei se coloco na gaveta de traumas ou arquivo familiar (talvez essas duas gavetas formem a mesma estante). Ela foi muito categórica comigo, em um ato benevolente e me disse “pode usá-lo, mas de forma alguma use ao mesmo tempo que faz outras coisas, como usar o computador".
Vale lembrar que no início dos anos dois mil, poucas casas tinham computador e era um só pra família, mas novamente, esse era um pertence dessa tia. Ela saiu, olhou pra trás e me deixou lá, sentadinha com o discman no colo e com os fones que eram grandes demais pra minha cabeça, me deu tchau e fechou a porta. O que eu fiz assim que ela deu as costas? Isso mesmo, liguei o computador, fui para o dicionário português/inglês que tinha em um cd-rom, que era o meu passatempo preferido em uma época pré banda larga. Fiquei ouvindo música enquanto traduzia palavras do meu cotidiano. Mamão foi a palavra que me levou à ruína. Mamão em inglês é Papaya. Mamão papaya. Essa combinação explodiu minha mente de recém-alfabetizada. Levantei em um salto para ir correndo contar pra minha mãe a minha mais nova descoberta.
O discman estava carregando, fio no meio das pernas, tropecei e derrubei ele no chão, que se partiu em dois. Naquele momento eu tive a minha primeira experiência de pós-morte, que era o que eu acreditava que aconteceria.
O que eu posso dizer é que aquele foi um dos dias mais longos da minha vida, os minutos levavam horas pra passar, e as horas corriam enquanto eu tentava pensar no que fazer, antes que ela voltasse pra casa.
Sempre que eu lembro dessa história, eu começo a pensar em várias vertentes de um mesmo assunto. No final das contas, ela estava certa em não me emprestar as coisas dela, sabendo que eu era uma criança, e que tinha noventa por cento de chance de eu estragar, mas, ao mesmo tempo, eu fico pensando no quanto aquilo me assombrou por anos e ao invés de me fazer superprotetora com as minhas coisas, me fez ser mais tranquila. Eu não queria passar por aquele nível de estresse de novo e não queria que ninguém sentisse o que eu senti. Hoje, se alguém quebra ou estraga algo meu, no máximo peço para a pessoa substituir por um novo, até mesmo se fosse algo que eu já não usasse, não me importaria nem com a devolução.
Vinte anos depois eu me pego olhando pra esse acontecimento e pensando se valeu mesmo a pena ela ser tão protetora com aquelas coisas. Ela não viu as imagens completas dos livros, já que não os abria completamente, os plásticos dos brinquedos secaram e foram se desfazendo com o tempo, o discman foi quebrado pela sobrinha, num golpe de teimosia e azar. Será que vale mesmo a pena a gente guardar coisas e sentimentos de forma imaculada? Será que não era melhor aproveitar ao máximo e quando estragassem, substituíssem por outros? Será que não é o momento de a gente colocar a vida à prova?
Espero ser mais corajosa que ela.
Dicona da semana
Sábado fui ao cinema e assisti o mais novo lançamento da AS4, o Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, protagonizado pela musa Michelle Yeoh. Não vou falar muito pra não estragar o filme, basta saber que mexe com multiversos e coisas muito loucas.
Você por aqui?
Fiquei sabendo que meu amigo Cris Dias indicou essa cartinha no Braincast, e só aí eu fui entender de onde estavam surgindo tantos novos assinantes.
Pra quem não me conhece prazer, eu sou Jessica e escrevo sobre o que mora dentro de mim e pede pra sair. No horário comercial sou editora de podcasts (recentemente produzo e escrevo roteiros também) e também coapresento um podcast chamado Segunda Mão, como o meu amigo Thiago Guimarães. Aqui é meu cantinho de experimentações e também de troca, essa newsletter só é tão gostosa de produzir porque você aí divide seus pensamentos comigo!
Enfim, sejam bem vindos e aconcheguem-se, quando quiser é só dar um reply nesse e-mail que eu respondo assim que possível.
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Um beijo, e até semana que vem.