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Quando criança, uma das formas que eu mais gostava de demonstrar carinho, era escrevendo cartas. Escrevia para professores no fim do ano, para amigas no aniversário, para meninos que gostava na época. Eu usava toda a minha criatividade para não entregar apenas uma folha com algo escrito, decorava com papéis de sobras de material escolar, embrulhos de presente, embalagens que eu achava bonitas, tudo o que eu sentia que era necessário para chegar do outro lado com mais sentimento possível. A mensagem, é claro, era a parte mais importante, mas pra mim, decorar aquele invólucro que carregaria todos os meus sentimentos que foram transformados em palavras, também era muito importante.
Sempre gostei da ideia de cápsulas do tempo, mesmo que eu não tenha feito nenhuma, mas, pra mim, a palavra escrita no passado esperando encontrar alguém no futuro sempre me deixa com um sentimento agridoce.
Li um livro chamado “A palavra que resta” do escritor Stênio Gardel, que mexeu muito comigo. Acompanhamos a história de Raimundo, um homem gay analfabeto que guarda consigo uma carta que recebeu do seu amado há cinquenta anos e nunca conseguiu ler, e também nunca deixou ninguém ler pra ele. Aqui, onde ele diz que precisa ler sozinho essa carta, que é uma das coisas mais pessoais que ele tem, a gente vê como a escrita e a leitura não dependem de um só, e sim, de quem está do outro lado.
Escrever para alguém necessita de um desprendimento de sensação de poder, já que a gente nunca sabe como a pessoa vai interpretar. Precisa também de controle pessoal, porque quem recebe a carta pode escolher nunca responder. Cartas podem ser vias de mão única, podem ser facas que cortam o tempo, que quando chegam perto do calor do fogo, selam esse caminho sem olhar pra trás.
No podcast Rádio Novelo, A escritora (e minha amiga) Gaía Passarelli conta sobre uma carta que sua tia a deixou para ser lida quando ela completasse quarenta anos de vida (o que no momento de leitura, percebeu que era na verdade para ser lida quando ela completasse meio século) e ali, ela teve que lidar com o conflito da lembrança de duas versões da tia, aquela que ela admirava e aquela que se tornou antes de morrer. Esse é um exemplo de carta que não terá remetente, não terá caminho de volta, esse ciclo se encerrará ali, ela tendo o que dizer ou não.
Anos atrás, minha mãe me disse que tinha escrito uma carta, que seria entregue a mim só quando ela morresse, e ali eu saberia tudo o que eu fiz de ruim pra ela. No momento que eu ouvi essas palavras saindo da sua boca, eu senti pela primeira vez o amargor da cápsula do tempo, pela primeira vez eu vi que cartas não enviavam apenas mensagens de amor, de afago, mas também lanças que poderiam dilacerar o meu peito assim que eu decidisse abrir aquela bomba relógio.
Fiquei muitos anos refletindo sobre se eu recebesse essa carta, se eu abriria ela, ou a queimaria e a deixaria ir embora com todo o seu rancor. Eu não sei dizer, até porque essa resposta pode mudar muitas vezes, mas eu sei que esse é o tipo de mensagem para a posteridade que eu não vou deixar. Eu quero deixar palavras que façam as pessoas se sentirem afagadas, que seja um alento em um momento difícil. Tudo de ruim que precisa ser dito, que seja dito hoje, que eu não carregue para meu túmulo essas dores que o tempo apaga, se a gente deixar ele levar. Se o tempo é rei, se ele é entrega, se nele não mandamos e às vezes não entendemos, que ele siga só com o melhor de nós. Que não carreguemos dores dos outros que não nos cabem.
Como diz o ditado iorubá “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”.
Dicas e redicas (já que comentei de algumas aqui em cima)
Começando com o livro A palavra que Resta, que vale muito ser lido e que vale também entender como lidar com certas frustrações que nós como leitores temos.
O episódio que citei da Gaía é esse aqui:
E uma dica final e não menos importante, é o filme belga Close, que foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro desse ano. Ele fala das dificuldades de lidar com os sentimentos na adolescência e até onde isso pode levar. É um filme delicado, triste, mas cheio de momentos que batem profundamente na gente. O filme chega aos cinemas dia 2 de março à MUBI no dia 21 de abril.
Você por aqui?
Fiquei pensando se deveria ou não mandar cartinha no meio do carnaval, mas como sei que nem todo mundo lê assim que envio, decidi deixar esse presente na sua caixa de entrada.
Se quiser, como sempre, é só responder esse e-mail ou deixar um comentário na caixa do próprio substack. Eu amo essa nossa troca!
Que você tenha descansado e esteja pronto para mais uma semana.
Até segunda-feira que vem!
Escrever cartinhas para as amigas sempre foi algo muito natural para mim.
Guardo até hoje todas as que eu recebi...
Há pouco tempo me mudei e durante o processo de mudança encontrei a caixa onde guardo as lembranças de infância.
Encontrei uma carta que meu pai escreveu pra mim quando eu estava participando de um retiro que não queria.
Não recordava as palavras escritas naquele papel, mas quando reli a carta, agora adulta, lembrei exatamente de como me senti no dia em que a recebi e no o quanto eu tinha chorado por nao me sentor amada e me sentir uma péssima filha, considerando que o conteúdo era bem negativo.
Preferi jogar a carta fora.
Hoje entendo que eram dores e projeções que meu pai havia colocado em mim.
Felizmente, agora eu sei que a culpa nunca foi minha.
Obrigada por compartilhar!
Querida Jess, obrigada pela sua carta, ela me pegou em cheio. Infelizmente estava escrevendo e esbarrei em alguma coisa aqui e apagou tudo aaaaaa kkkkk. Isso é engraçado pq eu escrevia justamente sobre gostar de imaginar como a pessoa receberia minha carta, se ela leria rápido, devagar, se releria, se faria um ritual para ler sentando em um lugar confortável colocaria uma musica e leria com muita calma absorvendo cada palavra (sou dessas). Concordo com o que vc escreveu sobre cartas trazerem dores também. Certa vez, ainda criança, escrevi uma carta para minha mãe, era dia das mãe então juntei poucas moedas q eu mal recebia para o lanche e comprei uma vazo vermelho sua cor favorita e margaridas de plástico, tudo tinha um significado, a cor favorita dela e as flores favoritas dela que fazia ela mesma lembrar da minha avó. Na carta eu desejava morrer ou me tornar igual a minha irmã mais velha pq só dessa maneira eu seria digna do seu amor, eu tinha q ser igual a filha favorita. Nunca me esquecerei de como minha mãe recebeu essa carta.
Ainda amo cartas e uma das minhas séries favoritas da vida tem muitas cartas da Felicity para sua terapeuta Sally :)
Obrigada por compartilhar sobre vc, um bjo da sua amiga
Ka.